Incríveis painéis com arte rupestre da Era Glacial pintados ao longo de 19 km de superfície de rochas areníticas na Amazônia colombiana datados de cerca de 12 mil anos atrás sempre foi um mistério para os pesquisadores. Finalmente, ao lado de anciãos indígenas de varias etnias, pesquisadores começaram a compreender seu significado.
A localidade de Serranía de la Lindosa reproduz dezenas de milhares de ilustrações de humanos, animais, seres mitológicos e vegetação, todos pitados em ocre vermelho. As pinturas tem simbolismo multivariado, refletem manifestação de crenças culturais e espirituais, bem como uma ferramenta comunicativa para construção de narrativas sociais, saberes sobre plantas e animais, ciclos ambientais e sociais, clima, mitos, tempos de caça e coleta.
Essa arte amazônica antiga é entendida sob um paradigma abrangente chamado “Novo Animismo”, uma prática relacional na qual os humanos cultivam relacionamentos com outras seres, sejam humanas ou não humanas, míticas.
As pinturas eram usadas e elaboradas em seções rituais, em que xamãs em estados alterados de consciência orientavam as pessoas, transmitiam informações sobre a caça, o tempo, as relações na comunidade, usando de comunicação simbólica animista, mitologia, em que cada ser tem um significado real e fora da realidade observada.
Um exemplo claro é a decoração decoração tukano, ela não é mimese, os indígenas não copiam formas de vida da natureza. Animais assumem funções de pessoas, comunicam informações para os xamãs.

Jamie Hampson, professor e autor do estudo, explicou que descendentes indígenas dos artistas originais nos explicaram, recentemente, que os motivos da arte rupestre aqui não simplesmente ‘refletem’ o que os artistas viram no mundo ‘real’. Eles também codificam e manifestam informações críticas sobre como comunidades indígenas animistas e perspectivistas construíram, se envolveram e perpetuaram seus mundos ritualizados e socioculturais.
Ou seja, como foi explicado por Ulderico, especialista em rituais Matapí, aos pesquisadores, para entender o que as imagens significam, “você tem que olhar [os motivos] do ponto de vista xamânico”.
Os autores afirmam que a cosmologia indígena amazônica se baseia em conceito chamado pelos antropólogos de Novo Animismo, no qual o corpo físico de cada ser vivo pode ser imaginado como uma ‘capa externa’, ou ‘roupa’, escondendo sua forma humana.
Os significados por trás das imagens são realmente alucinantes. Colaborando com anciãos indígenas na Amazônia colombiana, pesquisadores aprenderam que a coleção épica de pinturas antigas faz alusão a uma dimensão espiritual oculta que os xamãs são capazes de navegar ao se “transformarem” em animais em sua imaginação.
Para interagir com a verdadeira essência de outros seres, os xamãs ritualisticamente se livram de suas próprias coberturas superficiais e entram em um reino espiritual no qual os limites entre as espécies são borrados, mesclados.
Por exemplo, os xamãs são frequentemente conceituados na forma de onça enquanto navegam na “dimensão sobrenatural” mitológica, onde podem acessar o conhecimento e o poder espiritual que o animal esconde sob seu exterior físico. A palavra Desana yee, por exemplo, significa onça e xamã. Há vários exemplos etnográficos na Amazônia de especialistas em rituais se transformando em onças, conforme suas mitologias, explicam os pesquisadores.
Argumentamos que a arte rupestre aqui está conectada a especialistas rituais negociando reinos espirituais, transformação somática e a interdigitação de mundos humanos e não humanos”, dizem os pesquisadores. Essa interpretação é apoiada pelo grande número de cenas retratando transformações teriantrópicas, por meio das quais os humanos são dotados de características animais, como se estivessem se transformando em cobras, onças ou pássaros.
Os falantes de Tukano, Desana, Matapí, Jiw e Nukak que acompanharam os pesquisadores aos sítios de arte rupestre destacaram essas imagens, discutindo a transformação fluida entre os estados animal e humano.
De acordo com Hampson, essa colaboração incrível marca “a primeira vez que as visões dos anciãos indígenas sobre a arte rupestre de seus ancestrais foram totalmente incorporadas à pesquisa nesta parte da Amazônia”. “Ao fazer isso, permite não simplesmente olhar para a arte da perspectiva de um estranho e adivinhar”.
“Isso nos permite entender que esta é uma arte sagrada e ritualística, criada dentro da estrutura de uma cosmologia animista, em lugares sagrados na paisagem.” Isso também enfatiza como os sistemas de crenças e mitos indígenas precisam ser levados a sério. Descreve Jamie Hampson.
Arte rupestre, xamanismo, etnografia e etnohistória em La Lindosa
A pesquisa sobre arte rupestre na Amazônia, na América do Sul indica que a arte nessa região é um reflexo de crenças culturais e espirituais, bem como uma ferramenta comunicativa. A obtenção de pigmentos, o “estilo” artístico, a composição e a escolha do assunto estão inseridos em normas e ontologias sociais, e as tentativas de identificação ética da arte rupestre não apenas destacam a fluidez central nas categorizações indígenas, sugerindo que a especificidade inequívoca de uma imagem não era objetivo do artista original.
As evidências etnográficas nos dizem que a decoração Tukano não é mimese; os índios não copiam formas de vida da natureza segundo os autores. Da mesma forma, a habilidade e a perfeição artística e técnica dos Tukano não são essenciais. Um artefato pode ser malfeito, uma dança pode ser executada desajeitadamente ou uma pessoa pode ter uma voz ruim para cantar. O que conta o significado. A excelência artística nunca deve se tornar uma meta. Na verdade, os xamãs alertam as pessoas para não serem muito perfeitas em termos de forma, para não se impressionarem muito com as aparências.

Os motivos de arte rupestre em La Lindosa parecem espelhar e incorporar esses conceitos, com a ação de pintar — e a resultante “presença” de um motivo — de maior preocupação do que transmitir as especificidades anatômicas de um veado ou uma figura humana. Parece que muitas imagens em La Lindosa, e corpus de arte rupestre em outros lugares, foram deliberadamente pintadas sem características diagnósticas.
Os artistas da antiguidade podiam e frequentemente escolhiam acentuar certas características para aumentar a potência de um motivo específico. Igualmente importante, há inúmeros textos etnográficos nas Américas que deixam claro que os motivos pintados eram e são coisas poderosas em si mesmos; de fato, a palavra para pigmento é frequentemente sinônimo da palavra para ‘potência’ ou ‘espírito sobrenatural’.
Desta forma, a especificidade taxonômica nem sempre foi o objetivo dos artistas indígenas, em parte porque muitas entidades, incluindo motivos de arte rupestre, eram consideradas “emergentes” ou em “processo de transformação”; para muitos grupos indígenas na Amazônia e em outros lugares, os processos em uma estrutura animista foram e são tão importantes quanto o produto final, se não mais.
Em muitas cosmologias perspectivistas e animistas amazônicas tudo o que cresce, se move ou evolui é “igual” a um humano, com uma alma e uma vida social. Para esse fim, o corpo físico de cada ser vivo pode ser imaginado como uma “capa externa”, ou “roupa”, escondendo sua forma humana. Somente outros membros da mesma espécie, ou seres especiais como xamãs que cruzam as fronteiras das espécies, podem ver através dessa “cobertura externa” mítica.

d ) sequência de salto/transformação de macaco; ( f ) animal desconhecido com pés circulares e elementos de cabeça curvados. Fonte: Imagem dos autores
De acordo com essa maneira amazônica de ver e viver, o mundo é habitado por vários tipos de “seres emergentes” mitológicos, incluindo humanos e não humanos, que percebem a realidade fluidamente e de pontos de vista diferentes, mas complementares. Essas entidades, incluindo espíritos, animais, plantas e até objetos, são conscientes e, como os humanos, têm a capacidade de refletir e influenciar eventos no pensamento das culturas indígenas locais, sobretudo quando intermediados por um líder especializado da comunidade.
Existe um papel fundamental dos especialistas rituais em grupos amazônicos. Há inúmeras referências etnográficas aos papéis cruciais que os payés [xamãs] desempenham. Além disso, quando Victor Caycedo, um ancião Desana, nos acompanhou aos locais em 2022 e 2023, ele explicou que
“o payé é quem comanda na maloca (casa), ele é quem tem os poderes, ele é quem tem o yagé [ayahuasca alucinógena], ele faz o relâmpago cair, ele faz o inverno cair… Os payés podem ver por dentro e por fora; eles podem ver os ossos de uma pessoa. Se um homem está doente, ele pode ver uma “mancha”. Ele vê marcas pretas no seu joelho, se é onde você está doente. O payé vê as coisas, diagnosticamente, tanto agora quanto no futuro. Os payés abrem um espaço: o feitiço é poderoso.” (Victor Caycedo, um ancião Desana)
Conforme Ismael Sierra, um ancião do grupo Tukano Oriental, também se refere aos payés como “grandes sábios… ou historiadores antigos… Eles são capazes de se transformar em uma pessoa, para alcançar este mundo. E esse poder, ele tem mais do que nós. Ele sabe mais do que nós.”
As colinas com as pinturas na floresta não são apenas locais de encontro de um xamã e Waí-maxsè (o Mestre dos Animais, uma figura importante no mundo animistico mitológico indígena), mas também os locais onde, em suas alucinações, vários xamãs de tribos vizinhas celebram suas reuniões.
Entre eles e o Mestre dos Animais, uma verdadeira troca se desenrola durante a qual cada um tenta obter vantagens. Imagina-se que dentro das colinas uterinas, que são como grandes casas comunais, os animais pendem das vigas em um estado sonolento, e o xamã escolhe os animais de que precisa para os caçadores de seu grupo. Indo de viga em viga, ele os sacode e, a cada sacudida, os animais despertam e vão para a floresta. Waí-maxs, o Mestre dos Animais, è “cobra por sacudida” e, às vezes, quando mais animais foram despertados do que o pretendido e negociado, as negociações são renovadas com o Mestre dos Animais, que pede mais e mais animais para os caçadores.
Milhares de Pinturas em seis painéis embasaram uma extensa pesquisa
Os Pesquisadores focaram em seis painéis de Cerro Azul: Currunchos, Demoledores, Las Dantas, El Más Largo, Principal e Reserva. Os painéis selecionados oferecem uma variedade de localização, tamanho e número de imagens; eles também são relativamente bem preservados e acessíveis para fotografia com drones.

Las Dantas e El Más Largo são grandes abrigos rochosos com 998 e 1031 imagens, respectivamente. Principal tem uma alta densidade de motivos bem preservados (244). Currunchos contém 153 imagens, e o acesso ao local requer uma travessia desafiadora de dentro de uma boca de caverna ao redor de um afloramento rochoso. O acesso à Reserva (244 imagens), mais acima na face do penhasco, também é difícil e requer escalada. Os 171 motivos em Demoledores estão em uma alcova côncava com uma vista impressionante sobre a floresta tropical.
Usando fotogrametria de drone e fotografia tradicional, a equipe criou um imagens 2D e 3D de cada um dos painéis antes de empregar o software GIS (ArcGIS Pro 3.3) para aplicar coordenadas x e y relativas e um número identificador exclusivo a cada motivo. Os motivos foram então atribuídos a uma das quatro categorias descritivas: Figurativo, Geométrico, Abstrato e Desconhecido.
A categoria Figurativo inclui subcategorias: humanos, animais (incluindo teriantropos), figuras esquematizadas, impressões de mãos, flora e objeto.
Os motivos das pinturas animais
Os mundos natural e sobrenatural na Amazônia foram e são fluidamente integrados, e os animais são dotados de características e comportamentos semelhantes aos humanos.
os animais frequentemente incorporam ou contêm os espíritos dos ancestrais, com os três maiores mamíferos da floresta — anta, onça-pintada e veado — particularmente reverenciados como animais espirituais; eles são “como pessoas”. A fusão e a transformação entre estados animais e humanos (incluindo uma espécie animal em outra espécie animal) é um componente comum das cosmologias amazônicas, com inúmeros mitos apresentando transformações dentro e entre uma ampla gama de espécies animais.

os animais em La Lindosa são representados individualmente e em grupos. Eles são mostrados tanto estaticamente, em pé, quanto dinamicamente, veados correndo, macacos saltando. Os animais são retratados em perfil ou de cima para baixo. A vista de cima para baixo é limitada a Crocodylia, lagartos, tartarugas e arraias.
Os morcegos parecem ser o único animal representado em vista de retrato, face a face. Apesar da ocorrência frequente de pênis em figuras humanas (muitos dos quais estão eretos) a genitália está quase totalmente ausente dos animais pintados. As representações de pés são às vezes específicas, e não específicas, sem definição de pé, e abstratas. Quando retratados, o número de dedos varia consideravelmente, mesmo em um único animal.
Os falantes de Tukano, Desana, Matapí, Jiw e Nukak que nos acompanharam aos sítios de arte rupestre destacaram essas imagens, discutindo a transformação fluida entre os estados animal e humano em uma visão de mundo animista e perspectivista.

O xamanismo e o “Mestre dos Animais” dentro de um cosmos hierárquico
Em muitos grupos amazônicos, as relações entre humanos e animais são mediadas pela figura mítica do Waí-maxsè , o “Mestre dos Animais” e “espírito da floresta” que protege e controla os animais.
A liberação da caça e uma caça bem-sucedida exigem negociação com esses espíritos. De fato, as caçadas eram e são regulamentadas por regras, restrições e rituais, muitos dos quais estão relacionados à fertilidade dentro de uma ontologia animista.
Há vários exemplos etnográficos e etno-históricos de especialistas em rituais negociando com o Mestre dos Animais para soltar caça; os xamãs realizam transes ritualizados e visitam abrigos rochosos para pintar animais antes das caçadas: Com um pigmento vermelho pintam nas paredes rochosas os animais de que os caçadores necessitam, reafirmando assim seu pedido a Waí-maxsè, O Mestre dos Animais.
Ao lado das figuras, ou dentro de seus corpos, pintam os sinais que, segundo os tucanos, simbolizam a fertilidade: fileiras de pontos que significam gotas de sêmen, linhas em zigue-zague que significam a sucessão de gerações, ou linhas que preenchem o corpo do animal e significam sua fecundidade.

Os morcegos também são importantes para muitos grupos amazônicos não apenas porque são mamíferos voadores, incomuns, mas porque como onças e antas, são noturnos. Para muitos grupos a noite é associada ao reino subterrâneo dos espíritos, e à performance ritualística, estados alterados de consciência, sonhos e os mortos.
Apontando para as pinturas de morcegos no sítio de Principal, Victor disse: ‘Tanto foi dito que aqueles são os morcegos, mas acontece que isso… é uma vestimenta (um traje dos espíritos), e ele [o payé ] se veste e se transforma em um morcego.’
Outro exemplo de transformação incorporada é a figura humana com braços alongados e pernas incomuns em Raudal. Por informantes indígenas e etnografia sabe-se agora que xamãs em estados alterados de consciência frequentemente se descrevem como tendo membros alongados e outras distorções somáticas.
O mundo dos Xamãs e Plantas
Não são apenas os animais que são importantes para os especialistas rituais amazônicos. As plantas também desempenham um papel fundamental nas visões de mundo animistas. Os especialistas rituais são às vezes conhecidos como vegetalistas.

Em Chiribiquete, há representações pintadas de plantas yagé , yopo, virola e tabaco. Sementes do yopo alucinógeno (Anadenanthera peregrina ) e da resina de copal (Protium sp.), usada como incenso cerimonial por muitos grupos amazônicos hoje. Todos foram encontradas em escavações em La Lindosa. Em Cerro Azul há vários exemplos de motivos vegetais com pernas humanas.
As abordagens antropológicas para a pesquisa de arte rupestre são essenciais. A adoção explícita de uma perspectiva ontológica foi a base das interpretações da arte rupestre xamânica baseadas etnograficamente. Sem essa mudança, os dados etnográficos teriam permanecido não reconhecidos.
A suposta falta de tais evidências continuaria a servir como justificativa para a alegação colonialista de que a arte rupestre não tem conexão com os povos indígenas contemporâneos, continuando assim a despojar os povos indígenas de sua herança legítima. Somente ouvindo os anciãos indígenas e nos envolvendo totalmente com textos antropológicos que a pesquisa sobre arte rupestre em La Lindosa trará significados validos.
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DECIFRADA ENIGMÁTICA ARTE RUPESTRE NA AMAZÔNIA DA ERA GLACIAL, COM AJUDA DE POVOS MILENARES
Fonte
Revista MDPI