Atualizado 20 de maio de 2025 por Sergio A. Loiola
Pesquisa liderada por cientistas da USP analisou o genoma de 2,7 mil pessoas, de todas as regiões do País. A Pesquisa revelou que o Brasil é o país com maior diversidade genômica do mundo. Essa diversidade precisa ser contemplada pela saúde pública.
Os resultados da Pesquisa foram publicados na revista Science. O estudo tem 24 autores, 22 deles brasileiros e 11 vinculados à USP (incluindo todos os autores principais).
Kelly Nunes e equipe geraram dados de sequência do genoma completo para 2.723 indivíduos saudáveis em todo o Brasil, uma população caracterizada por miscigenação recente e desigual entre indígenas americanos, europeus e africanos escravizados.
Os resultados incluem a detecção de quase nove milhões de variantes genéticas inéditas, nunca antes identificadas em nenhuma outra população do mundo, que podem ser de interesse para pesquisas biomédicas e farmacêuticas “customizadas” para a população brasileira.

Também jogam luz sobre a herança genética de eventos traumáticos da história nacional, como a escravidão (que trouxe milhões de negros africanos à força para o Brasil) e o extermínio de povos originários (que tiveram sua população reduzida em mais de 80% desde o início da colonização europeia).
“Nossas descobertas ressaltam a influência perceptível de diferentes origens ancestrais na saúde e na constituição genética de indivíduos miscigenados brasileiros.
Demonstramos que esse panorama genético tem suas raízes na história evolutiva das comunidades indígenas brasileiras e na complexa interação demográfica resultante tanto da imigração histórica forçada quanto voluntária para o Brasil”, escrevem os pesquisadores, no resumo do trabalho na Science.
LEIA MAIS
POVOS ANTIGOS ABANDONAVAM ÁREAS DE CLIMA HOSTIL NO BRASIL
TESTE GLOBAL DA SEMANA DE 4 DIAS APROVADO, ECONOMIA CRESCE
Pesquisa revelou diversidade genética brasileira que estava oculta
A diversidade é uma das características mais marcantes da população brasileira contemporânea; resultado de uma grande mistura de populações indígenas, europeias, africanas e asiáticas.
O aspecto mais visível dessa miscigenação histórica é a imensa variedade de características físicas que podem ser encontradas entre brasileiros e brasileiras, de norte a sul do País.
Mas existe também uma variedade mais profunda, de características genéticas ainda pouco conhecidas em função da escassez de estudos mais abrangentes sobre o DNA da população brasileira.
Essa é a lacuna que uma pesquisa liderada por cientistas da Universidade de São Paulo busca preencher, com uma publicação na revista Science.

“A história da formação da nossa população a gente já conhece — a extinção de populações indígenas, a vinda dos africanos escravizados, a violência imposta a esses dois povos pelos europeus”, diz a geneticista Lygia Pereira, professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências (IB) da USP e uma das coordenadoras da pesquisa. “O que a gente enxerga agora, nesse estudo, são as consequências biológicas dessa história.”
A pesquisa trouxe revelações surpreendentes
Uma das conclusões mais surpreendentes do trabalho é que no DNA mitocondrial (que só é herdado da mãe) há uma prevalência de ancestralidade indígena e africana; enquanto que no DNA do cromossomo Y (que só é passado de pai para filho) predomina a ancestralidade europeia.
Segundo os pesquisadores, isso seria reflexo do “acasalamento assimétrico” de homens europeus com mulheres indígenas e africanas, impulsionado pelo caráter violento do processo de colonização, “que provavelmente resultou em uma maior mortalidade de homens indígenas e africanos, além da violência sexual contra mulheres desses grupos”.
Em outras palavras: é uma evidência genética de que homens europeus tiveram mais acesso reprodutivo a mulheres indígenas e africanas do que os homens das suas próprias etnias.

“Havia muitas camadas de violência. Mulheres eram dadas de presente, havia escravas reprodutoras, casamentos forçados; e claro, havia violência sexual também”, diz a geneticista Tábita Hünemeier, professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do IB-USP e pesquisadora do Instituto de Biologia Evolutiva (CSIC/UPF) da Espanha, que também é uma das coordenadoras da pesquisa.
Outra constatação do estudo é que a miscigenação produziu uma mistura inédita de ancestralidades africanas na população brasileira, em função do cruzamento de pessoas oriundas de diferentes regiões e etnias do continente africano.
“As porções africanas dos genomas brasileiros são altamente diversas e compartilham ancestrais recentes com grupos de diferentes regiões subcontinentais, especialmente da África Ocidental e Oriental, mas também do sul e do norte da África. Isso sugere que grupos dessas diferentes regiões, que talvez nunca tivessem tido contato entre si dentro da própria África, se miscigenaram no Brasil, resultando no surgimento de indivíduos brasileiros que são um mosaico de diferentes populações africanas”, escrevem os pesquisadores.
Estima-se que mais de 5 milhões de africanos foram trazidos como escravos para o Brasil até a abolição da escravatura, em 1888, número igual ao de europeus que teriam migrado para o País ao longo dos últimos cinco séculos, segundo dados citados no estudo.
Nos Estados Unidos, comparativamente, o número de africanos escravizados foi da ordem de 400 mil.
Quando Pedro Álvares Cabral “descobriu” o Brasil para os europeus, em 1500, estima-se que já havia mais de 10 milhões de indígenas vivendo em território nacional, falando mais de 1.000 línguas, com uma diversidade étnica imensa.
Mais de 80% dessa população nativa foi dizimada por conflitos e doenças, mas parte da identidade genética dessas populações extintas permanece incorporada ao genoma da população brasileira, segundo os pesquisadores.
LEIA MAIS
PREVENÇÃO DE DOENÇAS: DESCOBERTA PROTEÍNA QUE ENVELHECE
SURPREENDENTE DESCOBERTA NA CHINA AMPLIA MATRIZ HUMANA, COM DENTES E CRÂNIOS MAIORES
Predominância de genoma europeu, africano e indigena na matriz
De uma forma geral, a ancestralidade predominante nos 2.723 genomas analisados no estudo foi a europeia (com 60% de contribuição genética), seguida da africana (27%) e indígena (13%); além de uma contribuição asiática, de menor escala e mais localizada.
Esses números podem variar de acordo com a diversidade étnica dos indivíduos incluídos na amostra pesquisada.
Nesse caso, os genomas foram selecionados dentre os participantes de cinco estudos de observação clínica (chamados estudos de coorte), incluindo pessoas de todas as regiões do País. Entre elas, centenas de ribeirinhos da Amazônia.
A pesquisa é realizada no âmbito do projeto DNA do Brasil, lançado em 2019, que tem outros 6 mil genomas já sequenciados e em processo de estudo para futuras publicações, com uma diversidade genética e um poder de análise estatística ainda maiores.

O projeto faz parte do Programa Genomas Brasil, uma iniciativa do Ministério da Saúde, lançada em 2020, que tem como meta sequenciar o genoma de 100 mil brasileiros.
“Nenhuma amostragem vai ser totalmente representativa, porque o Brasil é muito grande; mas acho que conseguimos uma boa cobertura”, avalia Hünemeier. Uma coisa é certa:
“O Brasil tem a maior população miscigenada do mundo”, diz a pesquisadora — ressaltando que essa miscigenação está presente em todos os Estados do País, ainda que os perfis de ancestralidade variem de um lugar para outro.
“É como se fosse um reembaralhamento de ancestralidades, em 500 anos, de etnias que estavam separadas há milhares de anos”, completa Hünemeier.
O auge dessa miscigenação, segundo os dados genéticos do estudo, teria ocorrido entre os séculos 18 e 19, quando a migração de europeus e o tráfico de africanos para o Brasil foram intensificados pelos ciclos de exploração de diamantes e ouro, e a transferência da família real portuguesa para o Brasil, além de outros fatores.
“A gente aprende história com o DNA também. É muito incrível isso”, completa Lygia Pereira. Ela e Hünemeier são autoras correspondentes do estudo, junto com Alexandre Pereira, do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do Instituto do Coração (Incor) — que é parte do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP — e do Departamento de Genética da Escola de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos.
É possível que a população brasileira seja, também, “a mais miscigenada” do mundo, mas não há como afirmar isso cientificamente, segundo as pesquisadoras, pois seria necessário comparar essa diversidade genética do Brasil com a de outros países para os quais essas informações não estão disponíveis.
LEIA MAIS
PESQUISA INDICA QUE ENVELHECIMENTO NEUROLÓGICO É MAIOR NA AMÉRICA LATINA
SANEAMENTO E SAÚDE AMBIENTAL: A EVOLUÇÃO DOS BANHEIROS NA HISTÓRIA
Implicações médicas e na saúde pública da diversidade genética
Em meio a toda essa diversidade genética, os pesquisadores encontraram mais de 78 milhões de variantes de nucleotídeo único (SNVs, em inglês), alterações pontuais (de uma única “letra”) que ocorrem naturalmente ao longo do genoma humano e podem influenciar tanto características físicas quanto a fisiologia e a propensão a determinadas doenças, por exemplo.
Desse total, 8,7 milhões eram variantes inéditas, nunca antes registradas, que podem (ou não) ser exclusivas da população brasileira. E dentre essas variantes inéditas, 36.637 são consideradas potencialmente prejudiciais à saúde — ou seja, capazes de causar ou aumentar o risco de alguma doença.
Os pesquisadores já imaginavam que iriam encontrar uma quantidade grande de novas variantes, em função da genética brasileira ter sido pouco estudada em ampla escala até agora; mas o número, ainda assim, foi surpreendente.

“Foi muito mais do que a gente esperava”, diz a geneticista Kelly Nunes, que participou do estudo durante seu pós-doutorado no Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do IB-USP, entre 2022 e 2024. Ela divide a primeira autoria do trabalho na Science com outros três pesquisadores vinculados ao mesmo departamento: Marcos Araújo Silva, Maíra Rodrigues e Renan Lemes.
Os resultados são relevantes não só para a população brasileira, mas para todos os povos que contribuíram para essa miscigenação; muitos dos quais, a exemplo dos brasileiros, nunca tiveram sua diversidade genética mapeada de forma mais aprofundada.
“Não necessariamente essas variantes surgiram no Brasil”, explica Nunes. “Muitas delas estão relacionadas com ancestralidades africanas e nativo-americanas, que também são sub-representadas nos bancos de dados genômicos.”
Mesmo entre os países europeus, há muitas ancestralidades que também carecem de estudos mais detalhados, incluindo Portugal, Espanha e Itália, de onde vieram muitos migrantes para o Brasil.
“Não é porque o brasileiro é algum tipo de marciano; é porque a gente até agora só sequenciava DNA de gente branca”, destaca Lygia Pereira.
De fato, a vasta maioria dos dados genômicos depositados em bancos de dados internacionais até hoje são oriundos de estudos feitos com populações majoritariamente brancas, principalmente do norte da Europa e dos Estados Unidos.
“Então, basta você sequenciar alguma coisa um pouquinho diferente que começa a aparecer uma porção de novidades.”
Uma das prioridades de pesquisa daqui para frente será investigar a relevância biológica dessas variantes genéticas e suas possíveis implicações para a saúde humana, sejam elas benéficas ou nocivas.
Há mutações que aumentam o risco de câncer, por exemplo, enquanto outras conferem resistência ao HIV.
“Do ponto de vista mais prático, da aplicação em medicina, é muito importante a gente conhecer quais são as variantes genéticas que existem na nossa população e em que frequência elas ocorrem”, explica Pereira.
São dados fundamentais, por exemplo, para a interpretação de testes genéticos e para o desenvolvimento da “medicina de precisão”, que leva em conta as características genéticas do paciente, e da “farmacogenômica”, área da ciência que estuda a influência de características genéticas na resposta a medicamentos.
“Se quisermos desenvolver isso para a nossa população, é essencial conhecer essas variantes genéticas de outras ancestralidades (não europeias)”, reforça Pereira.
Outro destaque do estudo é a identificação de características do “genoma brasileiro” que passaram por processos recentes de seleção natural; Ou seja, que se tornaram mais frequentes na população nesses últimos cinco séculos.
Elas incluem genes associados a fertilidade, imunidade e metabolismo energético, aspectos críticos da biologia humana, que podem influenciar fortemente a saúde física e reprodutiva de uma população, especialmente num contexto histórico como o do Brasil.
No quesito fertilidade, foram selecionados genes favoráveis à reprodução (ligados à idade da primeira menstruação, nas mulheres, e à produção de espermatozoides, nos homens, por exemplo);
enquanto na imunidade foram selecionados genes que conferem maior resistência a doenças infecciosas, por exemplo.
“A gente acha que hoje em dia não estamos mais suscetíveis aos processos de seleção natural; que a medicina dá conta de tudo. Mas quando a gente faz uma pesquisa básica como essa, a gente vê que não é bem assim”, afirma Nunes. “O mais surpreendente é que estamos falando de algo muito recente. Do ponto de vista evolutivo, 500 anos é ontem.”
Política de Uso
É Livre a reprodução de matérias mediante a citação do título do texto com link apontando para este texto. Crédito do site Nature & Space
PESQUISA REVELA GRANDE DIVERSIDADE GENÉTICA NO BRASIL
Bibliografia
Revista Science
Admixture’s impact on Brazilian population evolution and health
Jornal da USP
Estudo mapeia impactos da miscigenação no DNA e na saúde da população brasileira