Nature & SpaceNature & Space

Atualizado 7 de maio de 2025 por Sergio A. Loiola

Sítios arqueológicos bolivianos contêm evidências de plantações capazes de sustentar grande população humana, e possivelmente contribuíram para a domesticação de patos.

Antes da chegada dos europeus à América do Sul, a cultura Casarabe ocupava grandes áreas do sudoeste amazônico, em um período estimado entre os anos 500 e 1400.

Cada vez mais surgem indícios de uma ampla população que, na planície boliviana conhecida como Llanos de Moxos, mantinha extensos milharais.

E isso é surpreendente. Artigos publicados nos últimos meses permitiram classificar essas plantações como monoculturas, publicados na Revista Nature, reforçar a importância do milho na dieta humana e associá-lo à domesticação de patos, segundo o divulgado na Nature Human Behaviour.

Já se sabia, de trabalhos anteriores, que toda aquela área é repleta de resquícios de assentamentos humanos, com centenas de montes monumentais conectados por canais e caminhos.

Nature & SpaceNature & Space

Leia mais:

POVOS ANTIGOS ABANDONAVAM ÁREAS DE CLIMA HOSTIL NO BRASIL

ESTUDO AVALIA A CONSERVAÇÃO DA FLORESTA DE ARAUCÁRIA-CAMPOS NO SUL DO BRASIL

A ENIGMATICA DISPERSÃO DAS CASTANHEIRAS NA AMAZÔNIA

Analise com sensoriamento revelou complexa engenharia de plantio, com redes de drenagem.

Canais nas áreas alagáveis serviam para escoar a água nas estações chuvosasBing Maps

Uma mistura de técnicas de sensoriamento remoto, análises microbotânicas e levantamentos de campo agora evidenciaram uma engenharia da paisagem voltada ao plantio, com canais de drenagem para escoar a água nos meses chuvosos, quando tudo alaga, e lagos para reter água na estação seca, o que também seria precioso para atrair caça.

De acordo com a investigação de vestígios de plantas, como os fitólitos (moldes petrificados das células vegetais, preservados em grande quantidade nos Llanos de Moxos), havia uma presença intensa de milho nos campos e lagoas, mas não nas partes onde havia floresta – o que deixaria claro que o cultivo não se dava em um contexto agroflorestal.

Llanos de Mojos e os locais estudados. Esquerda: mapa de Llanos de Mojos, gerado usando QGIS 3.34 ( https://qgis.org/ ) com a camada OpenTopoMap ( 
https://opentopomap.org/ ) sob CC BY-SA 3.0. Gráfico de T. Hermenegildo. Direita: mapa dos locais estudados, adaptado da ref.  Fig. 9, coordenadas em UTM, zona 20S, gráfico de H. Prümers. Imagem do artigo

A dúvida vinha, em parte, do fato de que é uma planta que requer solos férteis, o que se pensava não existir na Amazônia – e já se demonstrou falso com o conhecimento sobre a terra preta ainda hoje fabricada por povos indígenas.

Em menor escala, Watling e colegas identificaram – também nas áreas florestais – fitólitos de abóbora, mandioca, cabaça, entre outras plantas.

Segundo Jennifer Watling, o trabalho da Nature ressalta a importância do milho na dieta daqueles habitantes. O mesmo vale para o artigo anterior publicado na Nature Human Behaviour, cujo primeiro autor é o arqueólogo brasileiro Tiago Hermenegildo.

Ele estudou material dos Llanos de Moxos durante o doutorado, concluído em 2022, na Universidade de Cambridge, Reino Unido, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Milharal na Amazônia peruana: em alguns lugares há raças nativasEducation Images / Universal Images Group via Getty Images

O material agora foi repatriado e está depositado no museu em Trinidade, Bolívia, construído como retribuição a partir de fundos do projeto europeu.

Os achados dependem muito do acaso, que em parte determina o que é preservado ou não, e de estarem presentes nas áreas amostradas pelos arqueólogos, que recolhem os pequenos grãos depois de peneirar os sedimentos escavados.

Para fugir um pouco dessa necessidade de sorte, Hermenegildo desde o mestrado se concentrou no estudo de isótopos estáveis, formas variadas de átomos cuja composição não se altera ao longo do tempo, como acontece com os radioativos.

Leia mais:

EGITO: LARGO CANAL FLUVIAL DE 100 KM LIGAVA 38 PIRÂMIDES

PLANALTO PERSA FOI CENTRO PARA HOMO SAPIENS APÓS DISPERSÃO, HÁ 70 MIL ANOS

O carbono no colágeno dos ossos indica vegetais consumidos, enquanto o nitrogênio indica proteína animal

Canais de drenagem e modelo digital de elevação. a , A rede de drenagem completa. Os pontos numerados indicam a localização dos perfis de fitólitos.  b , Detalhe do modelo digital de elevação da parte norte da rede de drenagem. As linhas tracejadas representam o limite entre floresta e savana, mostrando que grande parte da rede de drenagem está atualmente coberta por floresta. Veja a Fig.  1b para a localização. Barras de escala, 1 km ( a ), 500 m ( 
b ).

O arqueólogo relata que na Amazônia não ocorrem naturalmente plantas do tipo C4 consumidas por seres humanos, como é o caso do milho, cujo mecanismo de fotossíntese produz moléculas com quatro átomos de carbono.

Encontrar esse tipo de carbono em ossos humanos e animais indica, portanto, o consumo de milho.

Watling, que não trabalha com isótopos estáveis, considera esse tipo de análise mais informativo para inferir a dieta, já que se detecta aquilo que as pessoas e animais consumiram em vida.

Mas o quadro mais amplo não deixa de ser importante. Antes do estudo isotópico, é fundamental conhecer a caracterização zooarqueológica e arqueobotânica do sítio, de acordo com Hermenegildo: Quais animais e plantas existiam no contexto da vida humana.

Lagos pré-colombianos serviam para irrigaçãoUmberto Lombardo / Universidade Autônoma de Barcelona

Milharais ajudaram na domesticaçao do pato

O estudo trouxe os primeiros indícios arqueológicos reforçando a posição do pato-do-mato (Cairina moschata), nativo daquela região, como a única domesticação local a leste da cordilheira dos Andes.

Ossos de pato-do-mato, a única espécie local domesticada a leste dos Andes (à esq.), estão presentes nos achados arqueológicos (à dir.)Dan Vickers | Heiko Prümers / Instituto Arqueológico Alemão

Os dados de isótopos estáveis ainda não permitem distinguir as fontes de proteína animal, ele explica, mas os ossos de fauna recuperados da escavação são principalmente de cervídeos.

Esses animais que podiam chegar a 40 quilogramas (kg) eram caçados e representavam uma refeição bem mais significativa para a comunidade.

Para Hermenegildo, o que seu trabalho mostra de mais importante é a centralidade do milho na alimentação pré-colombiana daquela área, cuja urbanização se deu em torno do cultivo.

Há indícios, segundo ele, de uma rede de troca entre as terras baixas amazônicas e os Andes, de forma que utensílios e adornos de cobre aparecem em sítios dos Llanos de Moxos.

O milho acabou sendo também plantado nas montanhas, mas ainda não se sabe por qual rota.

“A domesticação desse cultivo à altitude demorou mais”, explica.

Depois da chegada dos colonizadores europeus, as populações amazônicas começaram a ser dizimadas e os registros de milho também se tornam mais escassos, uma vez que a lavoura precisa de cuidado humano para prosperar.

A região é Centro de dispersão de milho nativo

Para ela, que é especialista na domesticação do milho e nas raças nativas ainda hoje plantadas na Amazônia, entender o histórico ligado à agricultura e ao patrimônio genético e cultural é importante inclusive, no âmbito de políticas públicas atuais de conservação e de segurança alimentar.

Costa considera crucial que os estudos de Hermenegildo, Lombardo e colaboradores sejam aprofundados para mensurar o tamanho dos campos de cultivo da cultura Casarabe e entender a diferença em relação ao que os povos indígenas praticam hoje. Ela põe ressalvas no uso do termo “monocultura”.

De acordo com Lombardo, os achados na Bolívia sugerem que a produção de alimento seria suficiente para alimentar uma população numerosa, mas isso ainda é especulativo.

Dificuldades com o uso de isótopos na arqueologia

Custo, acesso e preocupações éticas ainda limitam expansão da técnica

Tiago Hermenegildo terminou o mestrado em 2009 no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP).

“Fui para lá pela experiência com análises de isótopos estáveis, mas ninguém trabalhava com arqueologia.”

Ainda hoje, a ferramenta tem uso incipiente no país, inclusive por um problema de investimento, de acordo com a antropóloga portuguesa Maria Ana Correia, pesquisadora do Centro Interdisciplinar para Arqueologia e Evolução do Comportamento Humano, Portugal, e associada ao Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva da USP.

Ela também ressalta que a preservação do colágeno é difícil em muitos sítios arqueológicos brasileiros, em consequência da alta temperatura e umidade.

Correia é coautora de um artigo publicado na edição de janeiro da revista American Journal of Biological Anthropology, que ressalta os cuidados éticos necessários nesse tipo de estudo.

Política de Uso 

É Livre a reprodução de matérias mediante a citação do título do texto com link apontando para este texto. Crédito do site Nature & Space  

ANTIGOS MILHARAIS NA BOLÍVIA AJUDARAM A DOMESTICAR O PATO

Bibliografia

Projeto
Povos indígenas e o meio ambiente na Amazônia Antiga (nº 19/07794-9); Pesquisador responsável Eduardo Góes Neves (USP); Modalidade Projeto Temático; Convênio AHRC, UKRI; Investimento R$ 2.732.154,84.

HERMENEGILDO, T. et alStable isotope evidence for pre-colonial maize agriculture and animal management in the Bolivian AmazonNature Human Behaviour. 23 dez. 2024.


LOMBARDO, U. et al. Maize monoculture supported pre-Columbian urbanism in southwestern AmazoniaNature. 29 jan. 2025.


STANTIS, C. et alEthics and applications of isotope analysis in archaeologyAmerican Journal of Biological Anthropology. v. 186, n. 1, e24992. jan. 2025.

Revista Pesquisa Fapesp

O grande milharal amazônico

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here